Mais uma vez chegou o mês de outubro, e com ele o dia das crianças, e todas as atenções se voltam para esse público: são presentes, festas, saquinhos de Cosme e Damião. Os que já não são mais crianças compartilham fotos e momentos de uma forma nostálgica. O mês de outubro segue, e parece que toda essa atenção para com as crianças, acaba ficando apenas no dia 12 de outubro, quando muito, no mês.

Por Pedro Ribeiro (*)

Existe uma série de questionamentos que se fazem necessários diante do que vejo: As crianças têm mesmo o que comemorar? Existe de fato uma preocupação social com a realidade das crianças em nossa sociedade? A criança e o adolescente são prioridade absoluta- como afirma o artigo 227 de nossa constituição? A doutrina da proteção integral trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente é uma prática em nossa sociedade?

Acredito não ter a resposta precisa para todas as perguntas, nem teria a pretensão de tê-las, mas gostaria de acrescentar alguns elementos e dados que considero importantes para o debate. Não sou mais criança ou adolescente, também não quero aqui mais uma vez cair no erro de falar por elas (algo que acontece com certa frequência entre nós), porém acredito que enquanto militante da área da defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes, tendo acesso a dados e informações que ainda não conseguimos fazer chegar às crianças e aos adolescentes, mas que elas conhecem em sua vida cotidiana e que os/as atinge diretamente em seus corpos e subjetividades, tenho por obrigação compartilhar essas informações e fomentar esse debate.

As crianças e adolescentes, hoje representam 29% (60.546.697 milhões) da população brasileira, na região nordeste corresponde a 32% de sua população, destes 23% não possuem acesso à água pela rede de distribuição e 54% não possuem redes de esgoto ou fossa séptica em seus domicílios (IBGE – Censo 2010 e PNAD 2015).

Em torno de 60% (8 milhões) da população de 0 a 18 anos do Nordeste e 40% da população do Brasil, nesta faixa etária, estão em situação de pobreza ou extrema pobreza, vivendo suas famílias com renda domiciliar per capita mensal igual ou inferior a metade do salário mínimo (IBGE – PNAD 2015).

No ano de 2015, foram registrados 10.456 homicídios cometidos contra pessoas de 0 a 19 anos, atingindo o percentual de 18,4% dos homicídios notificados naquele ano em nosso país. Segundo dados da UNESCO, existem hoje 8 milhões de crianças de 0 a 3 anos sem acesso a creche no Brasil, mesmo contando com os números de vagas da rede particular, temos apenas 21,8% da taxa de cobertura de creches necessária (INEP- 2015).

Há ainda, os casos de trabalho infantil e de violência sexual. No ano de 2015, 5,1 % das crianças e adolescentes, com idades entre 5 a 17 anos residentes no Nordeste do nosso país, estavam em situação de trabalho infantil, chegando a vários casos a situações análogas ao trabalho escravo (IBGE – PNAD 2015). No caso dos registros de casos de violência sexual, foram notificados 17.131 registros de denúncias violência sexual (Secretaria de direitos humanos da Presidência da república – Balanço Geral – Disque 100).

Compreendo que todos esses dados acima se configuram enquanto dados de violência e de violações de direitos contra crianças e adolescentes. A realidade da cidade do Recife e do Estado de Pernambuco, infelizmente, segue e em alguns momentos extrapolam os dados das médias nacionais. O estado de PE registra até o final do mês de setembro o numero alarmante de 4145 homicídios (Dados da SDS-PE), se nos utilizarmos dos dados da SDS/PE que sinalizava que quase 10% dos homicídios de janeiro a abril foram de crianças e adolescentes, podemos fazer a trágica projeção de que em PE já podem ter sido assassinados aproximadamente 415 pessoas de 0 a 18 anos apenas esse ano. Segundo os dados do Conselho Tutelar do Recife, existem hoje 2000 crianças e adolescentes sem acesso a educação por falta de vaga na rede pública de ensino. As instituições da sociedade civil, que trabalham com acolhimento, atendimento e prevenção com o público de crianças e adolescentes, vivem uma realidade extremamente difícil, com falta de financiamento público e privado, tendo alguns, já reduzido drasticamente o seu atendimento e outras informando ao ministério público um possível encerramento de suas atividades.

Nos últimos anos, podemos observar (no mundo) o avanço de pautas e posturas, conservadoras e antidemocráticas. No Brasil após o golpe na presidenta Dilma, que foi em grande parte apoiado por uma ala do nosso legislativo ligada ao agronegócio, ex-militares e fundamentalistas religiosos, que por vezes são os portas vozes, desse tipo de pautas em nosso congresso nacional. Essas posturas, por diversas vezes, atingem diretamente os direitos de crianças e adolescentes, a exemplo do programa “Criança Feliz” colocado com uma das principais ações do governo Temer, que foi apoiada por grande parte do legislativo, mas que na prática traz a volta do “primeiro-damismo”, com uma proposta de política pública com viés assistencialista, acarretando a negação do direito social, a desprofissionalização dos executores das políticas públicas sociais e reafirma a condição de subalternidade da mulher.

E não para por aí: Ainda temos em nosso congresso, em tramitação a redução da maioridade penal para 16 anos (PEC 171/93), que ao invés de tratar o problema em sua raiz, propõe uma solução extremamente equivocada. Já que o ordenamento jurídico brasileiro propõe a responsabilização de adolescentes que comentem atos infracionais, e acaba desconsiderando a condição peculiar de desenvolvimento desses sujeitos.

Em Pernambuco, foi apresentado pelo atual governado um projeto de Lei (PLO Nº1596/2017), que previa, dentre outras coisas, a gratificação a policiais civis e militares que cumprissem mandados de prisão e busca e apreensão de adolescentes em conflito com a lei. Após uma grande mobilização de movimentos sociais, o governador retirou a parte do projeto que referia à apreensão de adolescentes.

Diante de todas essas questões e informações, me resta concluir que de fato, as crianças e adolescentes tem pouquíssimo a comemorar, nossas festas, brincadeiras e presentes estão sujos de sangue e dor, o sangue e a dor delas! Não acredito que haja uma preocupação e responsabilidade social com a infância e adolescência em nossa sociedade, ao contrário do que prevê o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Visualizo uma prática cotidiana para com as crianças e adolescentes, muito mais próxima do código de menores 1929, em detrimento da prioridade absoluta assegurada pelo artigo 227 da constituição de 1989 e da doutrina da proteção integral proposta pelo ECA.

Talvez não haja o que comemorar, mas há muito que lutar. Que fiquemos com as sabias palavras de Don Helder Câmara, “Há criaturas como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura”, que sejamos doces, porém firmes, como as crianças e os adolescentes, que mesmo tendo seus direitos violados resistem em existir! Que possamos lutar para torná-los cada vez mais sujeitos e protagonistas dessa luta.

(*) Pedagogo e Coordenador do programa Criança e Adolescente da Etapas