“Existem pessoas que se alimentam destas práticas. Existem pessoas que pagam por sexo com crianças e adolescentes, com o único intuito de realizar seus fetiches e desejos mais obscuros. Assim como a maldade alheia, que vem de uma prática milenar de mercantilização do ser humano, associados a uma questão meramente cultural e/ou econômica.”- Inês Dias (Militante na prevenção e combate à violência doméstica e sexual)

Em 23 de setembro é lembrado o Dia Internacional contra a Exploração Sexual. A Lei Palácios foi criada há exatamente 102 anos, na Argentina, para punir quem promovesse ou facilitasse a prostituição e corrupção de crianças e adolescentes e inspirou outros países a protegerem sua população, sobretudo mulheres e crianças, contra a exploração.

A Equipe Técnica de Assessoria, Pesquisa e Ação Social (Etapas), entrevistou a militante na prevenção e combate à violência doméstica e sexual, Inês Dias. Ela, que iniciou sua militância devido a opressão que sofria no ambiente doméstico, passou de vítima à representante do Brasil em movimentos internacionais. No momento, atua na assessora técnica da Secretaria Executiva da Criança e Juventude do Governo do Estado de Pernambuco .

Etapas: O que te motivou e como iniciou-se o processo de militância?

Inês Dias: A violência permeava a minha família. Em 1991, comecei a ser assistida pela ONG Feminista – Coletivo Mulher Vida – e então descobri que eu não precisava mais sofrer violência, ou melhor, que eu nem tinha que está sofrendo violência, pois as crianças precisam ser amadas e protegidas. Nesse despertar, veio o desejo de dar um basta, o desejo de libertação, o desejo de gritar para o mundo ouvir: “basta de violência.”

Durante estes 14 anos, fiz cursos, participei de espaços políticos e de controle social, passei a representar a instituição em conferencias, seminários, congressos e qualquer evento cujo o adolescente e o jovem fossem o público desejado. Mas, eu queria mais… participei do I Congresso Mundial contra a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, em 1996, na cidade de Estocolmo – Suécia. A partir de então  passei a representar o meu país em movimentos internacionais como foi o caso do ECPAT internacional.

A violência sexual pode ser configurada em abuso e exploração, qual a diferença?

Abuso sexual é todo ato de natureza sexual, com ou sem contato físico, sem o consentimento da vitima. E, nos casos com crianças, esse “consentimento” não existe.

No caso da exploração sexual, é todo ato de natureza sexual, com objetivo de lucro. Ou seja, o uso do corpo de uma criança ou adolescente para fins de obter prazer sexual, mediante pagamento. Este pagamento pode ser em espécie ou não (alimentos, objetos e bens de consumo).

O que configura a exploração sexual? Quais as causas?

A exploração sexual é caracterizada pela relação sexual de uma criança ou adolescente com adultos, ou pessoas mais velhas, mediante pagamento em dinheiro ou qualquer outro benefício. Ela se manifesta comumente nas seguintes formas: pornografia, exploração sexual, no turismo e trafico para fins sexuais.

O Guia de referência: construindo uma cultura de prevenção à violência sexual define a exploração sexual em agenciada e não agenciada. Ela é agenciada quando há a intermediação por uma ou mais pessoas ou serviços. No primeiro caso, as pessoas são chamadas rufiões, cafetões e cafetinas e, no segundo, os serviços são normalmente conhecidos como bordéis, serviços de acompanhamento, clubes noturnos. São não agenciadas quando há a prática de atos sexuais realizada por crianças e adolescentes mediante pagamento ou troca de um bem, droga ou serviços.

No tocante a exploração sexual, não podemos definir causas que levam a exploração. Podemos afirmar, sim, que muitos fatores estão associados a este tipo de crime, que podem ser de ordem cultural, social e econômica.

Quais as consequências causadas às vítimas?

O dano causado às vitima são, desde o amadurecimento precoce à aquisição de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), gravidez na adolescência e ou indesejada, maus tratos, violência física, uso abusivo de drogas e outros. Estes danos podem ser de natureza psicológica ou física, e em situações extremas, podem levar a morte.

Como está o atual cenário pernambucano em relação a essa prática?

Em Pernambuco o único dado oficial que temos é o mapeamento da Policia Rodoviária Federal, onde define alguns pontos de vulnerabilidade e exploração sexual nas rodovias brasileiras e destaca por Unidade da Federação. Contudo, é notório que este número é crescente, uma vez que não existe nenhuma proposta metodológica de intervenção prática com as vítimas nos locais citados, ou seja, há de certa forma uma falta de atuação frente a este tipo de violação por parte dos órgãos governamentais e não governamentais em Pernambuco.

No Disk 100, as denúncias de violência sexual chegaram a 7 mil em 2014, das quais 27% foram provenientes da região Nordeste e somente 5% foram de Pernambuco. Como podemos explicar este caso?

Com relação ao Disque 100, existem muitas questões a serem ponderadas. Neste caso especifico, eu faço um recorte de que a denúncia está diretamente ligada a resolutividade dos casos, ou seja, a sociedade de um modo geral tende a desacreditar nos canais de denúncia, quando os mesmo deixam a desejar.

O Disque 100 passou por diversas reformulações neste período, o que, de certa forma, comprometeu a sua qualidade. Principalmente nas intervenções de violência e nos encaminhamentos dados. Muitos equívocos com relação ao fluxo e até muitas vezes a inacessibilidade dos usuários aos canais. Contudo, é bem verdade que precisamos intensificar cada vez mais as campanhas educativas e informativas, visando a ampliação do olhar da sociedade acerca da denúncia, principalmente com relação a violações de direitos de crianças e adolescentes.

Segundo dados do II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil (2005), uma em cada três trabalhadoras do sexo, no Recife, tem menos de 18 anos e aproximadamente metade delas é usuária regular do crack. Qual sua análise a respeito deste dado?

Estes dados são no mínimo aterradores, afinal, nominar mulheres menores de 18 anos de trabalhadoras do sexo é no mínimo um grande equivoco. A legislação brasileira é muito clara, meninas ou meninos, menores de 18 anos envolvidas no mercado do sexo estão sendo vítimas de exploração sexual e tendo isso com um dado oficial, isso teria que no mínimo ter virado denuncia.

Ponderado este dado, infelizmente, a grande maioria dos adolescentes envolvidos na exploração sexual estão, sem dúvidas, enterradas nas drogas. Contrariando os argumentos da sociedade movidas pelo preconceito do senso comum, estas meninas não conseguem dinheiro fácil, muitas vezes têm que se drogar pra suportar os abusos e violências dos clientes, que pagam pelo sexo e desta forma se sentem no direito de fazê-los. Para estas pessoas, as vítimas tornam-se um mero objeto sexual e /ou mercadoria de troca.

Quais as práticas que ainda sustentam a rede de exploração sexual?

Na verdade, falando de forma simplória, e pode até ser considerada um pouco leviana, o que sustenta a rede de exploração sexual, com todo vigor que ela tem até hoje, é a demanda. Existem pessoas que se alimentam destas práticas. Existem pessoas que pagam por sexo com crianças e adolescentes, com o único intuito de realizar seus fetiches e desejos mais obscuros. Assim como a maldade alheia, que vem de uma prática milenar de mercantiliza do humano, associados a uma questão meramente cultural e/ou econômica.

Quais as ações de enfrentamento do Governo do Estado de Pernambuco?

A Secretaria Executiva da Criança e Juventude vem ao longo de quatro anos, precisamente, desenvolvendo o Programa Atenção Redobrada, que é uma estratégia viável de enfrentamento a estas e outras práticas de violação de direitos de crianças e adolescentes. O programa tem o município como o grande protagonista da ação, tendo o estado como um parceiro direto, no planejamento, capacitação dos atores envolvidos e no monitoramento.
A secretaria participa também como membro de espaços de articulação política e controle social, como fóruns, redes, comitês e conselhos de direito.

Quais os desafios enfrentados pelo Governo?

Os desafios são diversos. Atualmente, o principal deles é a conjuntura política e econômica atual, que não nos permite ampliar nossas ações, e muitas vezes, acaba por culminar com a descontinuidade de algumas ações. Contudo, desafios existem para serem superados, e é muito importante criar estratégias de superação. Uma delas seria estimular os municípios a desenvolverem ações locais, fomentando o protagonismo dos mesmos em iniciativas locais, onde oferecemos apoio de forma técnica e materiais educativos e informativos.

A Etapas esteve capacitando jovens mulheres do território Ibura-Jordão, durante o triênio 2012-2015, com o projeto “Reduzindo a Exploração Sexual de Meninas: Uma Abordagem Integrada” – confira a matéria